Saracura, Antônio FJ, A traíra grande (conto) – Tambores da
Terra Vermelha, 1ª ed., Aracaju: Infographics, 2013.
Resenhado por João Lover, poeta
Uma
das alegrias do leitor é deparar-se com literatura emocionante. Ao ler esse
conto, senti cachoeiras nos olhos. Chamo o texto de prosa-poema. Encontramos descrições
minuciosas do ambiente e das personagens, ritmo contagiante, leitura prazerosa
e muito mais, como veremos a seguir. Numa visão por fora (narrado em 3ª
pessoa), Saracura nos envolve, transporta-nos ao cenário, e sentimos no escrito
os elementos da literariedade, simplesmente, arte. O escritor nos mostra, com
sua habilidade e seu poder criativo, como se constrói um drama e se chega a um
desfecho espetacular. Vamos verificar uma parte dessa magnífica narrativa. Ao
final, comento o que pude observar buscando traduzi-lo tecnicamente, mas
existem inúmeras possibilidades de interpretação... Uma coisa é certa: A traíra grande nos encanta:
[...]
Quando as águas abaixavam, a
lagoa encolhia e se restringia apenas ao sítio Saracura, por ser uma depressão
geográfica acentuada.
As grandes traíras, os
brilhantes jundiás e os encouraçados caborjes, todos estavam agora, no nosso
lado da lagoa. Os outros lados já haviam secado há dias. A colheita estava
sendo no sítio Saracura, mas os peixes haviam sido criados também nos demais [...].
Manoel,1 filho de Fausto de Seulia, era um caboclinho miúdo, feio
que dava dó. Burlou a vigilância do pai, inimigo de papai a vida toda, e veio
para o lado de cá. Era muito estranho ele estar ali naquele momento!
Para ter benzido as cercas
(eram duas cercas paralelas e juntas, uma feita por Fausto e outra por papai,
em pirraça mútua) [...]
E ele, Manoel, dentro da sua
insignificância, assistia incógnito à azáfama dos pescadores2 — meus primos brancos —
trazendo peixes pelas guelras e colocando-os em sacos e latas vazias de
querosene Jacaré, na beirada da lagoa. [...] Peixes eram zunidos da água e
caíam na cama de junco seco, de onde alguém os recolhia e os guardava nas latas
e nos sacos.
Manoel estava à margem, na
beirada da água, assistindo a tudo, como hipnotizado. Ele queria uma traíra
daquelas... Não por que achasse que tinha direito, mas porque gostaria de
mostrá-la à mãe, dizendo que a pescara. Sentia, entretanto, que a lagoa era
funda demais para ele. Poderia afogar-se. E permaneceu ali, ignorado por todos,
vendo os pescadores encherem as vasilhas de peixes.2 [...]
Uma traíra, certamente a
maior traíra da lagoa, de beiço virado, lombo preto de crocodilo, acossada
talvez pelo entra e sai dos pescadores, voou para fora da água3, ficando a se debater no
junco seco, aos pés de Manoel. Surpreso, ele abriu a boca, sorriu, pisou com
jeito no lombo grosso e abaixou-se. [...] Segurou-a firmemente pelas guelras e
a levantou com suas mãozinhas, como se empunhando um troféu. Sentia-se premiado!
Levaria para sua mãe, que certamente faria um pirão3 [...]. uma sombra densa cresceu atrás dele. Era Tino,
o filho mais velho de tia Iaiazinha, que ajuntava os peixes que eram zunidos da
água, querendo a traíra:
— Essa vai para a lata de
Tio Zé! É a maior da lagoa. O dono do sítio tem todo o direito!4
Manoel viu que perderia [...].
E começou a choramingar. O dono do sitio e da lagoa deveria realmente ter
direitos especiais. Sentiu que não poderia evitar que Tino, um homem feito,
sobrinho do dono da lagoa, lhe tomasse o peixe.
Então chorou alto, gritando
que o peixe era seu, pois pulara aos seus pés e fora ele quem o pegara. Tino
esticou o braço para tomar o peixe. E Manoel, mesmo o querendo muito para si,
levantou suas mãozinhas para entregá-lo.5
Papai, que estava perto e ouviu tudo, aproximou-se, demonstrando espanto:
— Quem pegou esse peixe tão
grande?
E pousando a mão no ombrinho
de Manoel, perguntou outra vez:
— Foi você, meu filho?6
Tino tentava explicar que o
peixe pulara da água, tangido talvez por algum dos pescadores. O moleque apenas
se antecipara no seu trabalho de resgatá-lo.
Papai mandou Tino se calar e
olhou para o pequeno Manoel, que continuava choramingando, ainda segurando (mas
quase soltando) o grande peixe, e disse:
— O peixe é seu, Manoel. [...]
Pode levar para casa e dizer a sua mãe que foi você quem pegou.7
Manoel olhou agradecido para
papai e saiu correndo, com os passinhos miúdos, prejudicados por ter as mãos
ocupadas, fazendo o mesmo caminho da vinda [...]
Sessenta anos depois, eu ia [...]
pelo mercado Thales Ferraz, em Aracaju [...] E, passando pela grade de farinha
de Manoel de Fausto, hoje um homem idoso como eu, vi-o cochilando sobre a
sacaria, escornado, roncando. [...]
Nunca tive muita ligação com
os filhos de Fausto de Seulia (o inimigo de meu pai no povoado), mas Manoel
sempre me tratou bem, sempre retribuiu minha frieza com uma incoerente alegria.
Fiquei olhando-o um tempo,
assim dormindo. [...] Joguei-lhe, compassadamente, de seus próprios sacos,
caroços de milho, que o atingiram no peito desnudo, ricocheteando e
escorregando para o seu colo. Daí a pouco, ele acordou e, ao me ver ali parado,
abriu um largo sorriso.8
Levantou-se do leito improvisado e veio apertar minha mão, que nem lhe havia
estendido ainda.
Resolvi, então, fazer-lhe a
pergunta que, secretamente, carreguei sempre comigo:
— Manoel, por que você
demonstra tanta alegria quando me encontra? Eu mereço? Agora mesmo, em vez de
um esbregue, recebo um cumprimento afetuoso! [...] E acrescentou:
— Nunca esqueci o gesto de
seu pai naquele dia, ou melhor, tenho seu pai e os Saracuras no meu coração.
Nada marcou tanto a minha vida como aquela traíra, que é o peixe que mais gosto.9 No coco me dá mais prazer
do que quebrar caranguejo na Atalaia ou chupar picolé de mangaba da
Cinelândia...
E continuou:
— Sempre tive vontade de
contar a um de vocês essa história, mas nunca me deram oportunidade. Foi a
primeira vez que um Saracura jogou-me carocinhos de milho...10
Os outros vendedores de
cereais do grande mercado olhavam intrigados aqueles dois sexagenários
abraçados ao pé de uma fileira de sacos de cereais.11, 12
Então, vejamos alguns ingredientes do tempero da literatura:
1.
Filho do inimigo: uma criança.
2.
Alegria de todos, indiferença em relação
ao menino intruso.
3.
A solidão do menino, a coragem e a
vontade de participar. E surge o objeto cobiçado. Nesse instante, o leitor já
se identifica com o menino, está solidário a ele, junto com ele, defende-o, o
garoto é o nosso herói lutando com esperança, mesmo com todas as desvantagens,
desejando presentear a mãe querida e mostrando as características de pura
inocência (tônica da construção desse personagem).
4.
Arma-se a tensão: momento decisivo –
clímax –, um peixe raríssimo, certamente, seria assunto de muitas conversas ao longo de anos.
5.
A lei do mais forte se impondo à
fragilidade do menino.
6.
Um velho, líder, adulto trata o menino
respeitosamente, mostra sensibilidade...
7.
O prêmio inesperado – a alegria do
garoto...
8.
Depois de bastante tempo, o reencontro e
a conversa (antes, não houve oportunidade).
9.
A traíra virou a iguaria preferida desde
aquela época.
10.
A esperança se realizou.
11.
Emoção, abraço, vida!
12.
A história nos diz o quanto é importante
fazer uma criança sorrir.
Obrigado! Saracura!
Obrigado! Saracura!